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domingo, 25 de agosto de 2013
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda
A vida
secreta de José Marcelino por Fábio Kühn
“Nem eu sou para estas terras, nem estas terras para
mim”. O tom definitivo da sentença dá a impressão de uma relação inconciliável.
Mas as palavras de José Marcelino merecem um desconto. Quando ele as proferiu,
estava vivendo havia mais de uma década no Brasil, onde era governador, depois
de ter prestado importantes serviços militares durante um período das intensas
batalhas pelas fronteiras do Sul.
Em 1778, o ambiente na Colônia, de fato, não era dos melhores para ele. Bom administrador por um lado, por outro era turbulento, autoritário, de temperamento irascível. Chegava a hora de voltar para casa, e de voltar à sua identidade original: não José Marcelino de Figueiredo, mas Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda.
Manuel nasceu em 1735 na vila de Bragança, no extremo norte de Portugal. Era um homem da fronteira, que se criou em meio às rivalidades com os espanhóis. Seu pai, Antônio Gomes de Sepúlveda, chegou a ser coronel da cavalaria ligeira, mas a família tinha origens humildes – seu avô fora um simples sapateiro. Ingressou na carreira militar um tanto tardiamente, aos 27 anos, como cadete no Regimento dos Voluntários Reais, sediado no Faro. Dois anos depois, já como capitão de cavalaria, sua índole agressiva o envolveu numa tragédia: uma rude discussão com um colega de regimento, o escocês John MacDonell, terminou em assassinato. Julgado pelo Conselho de Guerra, foi condenado à pena de morte. Mas a sorte lhe abriu um novo destino.
Alguma misteriosa proteção superior o poupou da execução. Sua pena foi comutada e ele ainda acabou promovido, obtendo a patente de coronel do regimento da cavalaria auxiliar. Em contrapartida, teria que abandonar Portugal clandestinamente. Um ofício de 1765, enviado de Portugal ao vice-rei do Brasil, conde da Cunha, justificou assim o plano secreto elaborado para Manuel Sepúlveda: “Até o presente andou refugiado, e agora buscou ocultamente o serviço, e sendo como é oficial de préstimos, não é justo que se perca; não convindo, porém, que se saiba que tornou a ele: (...) o admita em qualquer dos Regimentos dessa Capitania com o (...) referido nome de José Marcelino; e guardando-se um inviolável segredo no referido”.
Com essa nova identidade, ele desembarca no Rio de Janeiro no mesmo ano. Não fica muito tempo na capital, pois o vice-rei o nomeia comandante da fronteira do Rio Grande, no acampamento de São Caetano, subordinado somente ao governador José Custódio de Sá e Faria. Como para purgar seu pecado original, o oficial é enviado para a fronteira, onde se presencia a “guerra viva”: a ocupação militar castelhana na região se prolonga há anos. Em maio de 1767, José Marcelino recebe ordens do governador para atacar o porto e a vila de Rio Grande, ocupados pelos espanhóis. Ele cumpre a determinação, mas o ataque é malsucedido, o que gera mal-estar nas relações diplomáticas entre as Coroas ibéricas.
Apesar do insucesso, deve ter causado boa impressão, pois em 1769, depois de outra passagem pelo Rio de Janeiro, foi nomeado governador da capitania do sul, também chamada Continente do Rio Grande, cuja capital era Viamão. A primeira fase de sua administração durou dois anos, no fim dos quais foi afastado das funções pelo vice-rei, marquês do Lavradio, certamente impaciente com suas seguidas demonstrações de desobediência. É o que explica o próprio Lavradio, em carta ao secretário da Marinha, Martinho de Melo e Castro: “Sou obrigado a dizer (...) que contra a limpeza de mãos do coronel José Marcelino não tenho cousa alguma, antes me consta ter servido com grande isenção, e os seus erros todos são nascidos de uma vaidade de fidalguia e de ciência que lhe parece estar superior a todos”. O vice-rei determinou inclusive a realização de uma devassa para investigar as atitudes de José Marcelino.
Mais uma vez, suas virtudes administrativas valeram mais que os defeitos da vaidade: nem as divergências com a maior autoridade da Colônia impediram que voltasse ao cargo de governador em 1773, agora na nova capital, Porto Alegre. Logo nos primeiros meses, teve de enfrentar um enorme desafio: os castelhanos, comandados pelo general Vértiz, fizeram nova tentativa de invasão do Rio Grande. Com uma estratégia inteligente, José Marcelino enganou os espanhóis, que estavam em sensível vantagem numérica: com salvas de tiros de canhão, fez crer aos inimigos que tinha munição de sobra, quando, na verdade, ela escasseava. Assim resistiu à investida e garantiu a defesa da fronteira. A ação lhe valeu bastante prestígio junto à Coroa e a promoção, no ano seguinte, a brigadeiro de Cavalaria.
Mas manter-se afastado de polêmicas não era com ele. Passada a guerra, envolveu-se em sucessivos conflitos com a Câmara de Porto Alegre. O primeiro atrito ocorreu em maio de 1777, quando mandou deter vereadores sob a alegação de que eles continuavam residindo na antiga capital, Viamão. Sua verdadeira intenção era pressioná-los a liberar recursos para o reparo de uma ponte. Passados quatro dias, eles concordaram em pagar a quantia exigida. No ano seguinte, o governador ordenou nova detenção de vereadores, com o pretexto de que a Câmara deveria pagar os aluguéis da casa do “mestre de meninos”, um professor primário. Em 1779, mandou prender o vereador mais velho da Câmara, Brás de Freitas Guimarães, por ter se negado a dar informação a um requerimento seu.
O que estava por trás dessa perseguição à Câmara era uma suposta aliança entre os vereadores e o coronel Rafael Pinto Bandeira, antigo desafeto de José Marcelino. A rixa vinha desde o início da década de 1770, mas, diante da conjuntura de guerra, o governador não podia dispensar os serviços militares dos poderosos. Em uma carta daquele período, acusou Pinto Bandeira de contrabandista, mas alegava não poder puni-lo, repetindo uma máxima muito utilizada pelos administradores coloniais: “Me achei na necessidade de fazer dos ladrões fiéis”. Ou seja, era preciso fechar os olhos a certas irregularidades.
No entanto, pacificada a capitania, José Marcelino reabriu as investigações contra o desafeto, determinando sua prisão. Desta vez, perdeu a queda de braço: o caso chegou ao Rio de Janeiro, onde um Conselho de Guerra mandou reconduzir Rafael Pinto Bandeira ao seu posto e determinou a saída do brigadeiro José Marcelino do governo do Continente do Rio Grande.
De volta ao Rio de Janeiro, já com idade relativamente avançada para a época – tinha 46 anos –, José Marcelino tomou uma providência fundamental para melhorar sua condição social: casou-se. A escolhida foi D. Joana Corrêa de Sá e Castro, descendente direta do poderoso Salvador Corrêa de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro por três vezes (1637-1642, 1648 e 1659-1660) e responsável pela libertação de Angola do domínio holandês. O casamento foi em setembro de 1781, na freguesia de Santo Antônio da Jacutinga (atual Nova Iguaçu), e um ano depois houve o batismo de sua primeira filha, Maria Inácia.
Em fins da década de 1770, José Marcelino já havia manifestado ao vice-rei o desejo de regressar a Portugal. Alegando que “suas moléstias” o tornavam “incapaz de governar”, pretendia “descansar à minha Casa e Província de Trás os Montes”. A licença veio, enfim, em 1783. E ele não só conseguiu permissão para voltar, como recuperou seu verdadeiro nome.
Quase vinte anos depois de sua vinda para o Brasil, estava reabilitado: retornava como brigadeiro, casado em uma das melhores famílias da terra e ainda por cima nomeado governador de sua cidade natal. A carreira de Sepúlveda, no entanto, estava longe do fim.
Estabelecido em Bragança, provavelmente em situação financeira confortável, faltava-lhe a promoção social que conduzisse ao enobrecimento. Isto ocorreu em 1789, quando se tornou fidalgo da Casa Real. Passados mais alguns anos, obteve uma carta régia com nomeação para governador das armas de Trás-os-Montes, um dos mais elevados postos militares de Portugal.
Do alto do nobre posto, ainda participou com destaque de um episódio marcante na história de Portugal: a guerra de libertação do domínio francês, em 1808. É considerado o líder da chamada Revolução Transmontana, iniciada por ele para expulsar os invasores. Do Rio de Janeiro, o príncipe regente D. João soube reconhecer o valoroso militar, nomeando-o para o Conselho da Guerra no ano seguinte.
Sepúlveda morreu em 1814, exatamente meio século depois de ter sido condenado à morte. A decisão de poupar-lhe a vida não poderia ter sido mais benéfica para o Império lusitano. Mesmo encrenqueiro e desobediente, ele ajudou Portugal em duas frentes: a garantir a fronteira meridional da América e a resistir contra invasores franceses na Europa. Seja como José Marcelino, seja como Manuel, não há dúvida: ele inscreveu seu(s) nome(s) na História.
Fábio Kühn é professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de “José Marcelino de Figueiredo, governador do Continente do Rio Grande”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, v. 140, 2005).
Saiba Mais - Bibliografia:
CAVALCANTI, Nireu. Crônicas Históricas do Rio Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
MACEDO, Francisco Riopardense de. O Aniversário de Porto Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorial, 2004.
SPALDING, Walter. Pequena História de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967.
VELLINHO, Moysés. “Um Sepúlveda no Governo da Capitania de São Pedro” in: Fronteira. Porto Alegre: Ed. Globo/UFRGS, 1975.
Em 1778, o ambiente na Colônia, de fato, não era dos melhores para ele. Bom administrador por um lado, por outro era turbulento, autoritário, de temperamento irascível. Chegava a hora de voltar para casa, e de voltar à sua identidade original: não José Marcelino de Figueiredo, mas Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda.
Manuel nasceu em 1735 na vila de Bragança, no extremo norte de Portugal. Era um homem da fronteira, que se criou em meio às rivalidades com os espanhóis. Seu pai, Antônio Gomes de Sepúlveda, chegou a ser coronel da cavalaria ligeira, mas a família tinha origens humildes – seu avô fora um simples sapateiro. Ingressou na carreira militar um tanto tardiamente, aos 27 anos, como cadete no Regimento dos Voluntários Reais, sediado no Faro. Dois anos depois, já como capitão de cavalaria, sua índole agressiva o envolveu numa tragédia: uma rude discussão com um colega de regimento, o escocês John MacDonell, terminou em assassinato. Julgado pelo Conselho de Guerra, foi condenado à pena de morte. Mas a sorte lhe abriu um novo destino.
Alguma misteriosa proteção superior o poupou da execução. Sua pena foi comutada e ele ainda acabou promovido, obtendo a patente de coronel do regimento da cavalaria auxiliar. Em contrapartida, teria que abandonar Portugal clandestinamente. Um ofício de 1765, enviado de Portugal ao vice-rei do Brasil, conde da Cunha, justificou assim o plano secreto elaborado para Manuel Sepúlveda: “Até o presente andou refugiado, e agora buscou ocultamente o serviço, e sendo como é oficial de préstimos, não é justo que se perca; não convindo, porém, que se saiba que tornou a ele: (...) o admita em qualquer dos Regimentos dessa Capitania com o (...) referido nome de José Marcelino; e guardando-se um inviolável segredo no referido”.
Com essa nova identidade, ele desembarca no Rio de Janeiro no mesmo ano. Não fica muito tempo na capital, pois o vice-rei o nomeia comandante da fronteira do Rio Grande, no acampamento de São Caetano, subordinado somente ao governador José Custódio de Sá e Faria. Como para purgar seu pecado original, o oficial é enviado para a fronteira, onde se presencia a “guerra viva”: a ocupação militar castelhana na região se prolonga há anos. Em maio de 1767, José Marcelino recebe ordens do governador para atacar o porto e a vila de Rio Grande, ocupados pelos espanhóis. Ele cumpre a determinação, mas o ataque é malsucedido, o que gera mal-estar nas relações diplomáticas entre as Coroas ibéricas.
Apesar do insucesso, deve ter causado boa impressão, pois em 1769, depois de outra passagem pelo Rio de Janeiro, foi nomeado governador da capitania do sul, também chamada Continente do Rio Grande, cuja capital era Viamão. A primeira fase de sua administração durou dois anos, no fim dos quais foi afastado das funções pelo vice-rei, marquês do Lavradio, certamente impaciente com suas seguidas demonstrações de desobediência. É o que explica o próprio Lavradio, em carta ao secretário da Marinha, Martinho de Melo e Castro: “Sou obrigado a dizer (...) que contra a limpeza de mãos do coronel José Marcelino não tenho cousa alguma, antes me consta ter servido com grande isenção, e os seus erros todos são nascidos de uma vaidade de fidalguia e de ciência que lhe parece estar superior a todos”. O vice-rei determinou inclusive a realização de uma devassa para investigar as atitudes de José Marcelino.
Mais uma vez, suas virtudes administrativas valeram mais que os defeitos da vaidade: nem as divergências com a maior autoridade da Colônia impediram que voltasse ao cargo de governador em 1773, agora na nova capital, Porto Alegre. Logo nos primeiros meses, teve de enfrentar um enorme desafio: os castelhanos, comandados pelo general Vértiz, fizeram nova tentativa de invasão do Rio Grande. Com uma estratégia inteligente, José Marcelino enganou os espanhóis, que estavam em sensível vantagem numérica: com salvas de tiros de canhão, fez crer aos inimigos que tinha munição de sobra, quando, na verdade, ela escasseava. Assim resistiu à investida e garantiu a defesa da fronteira. A ação lhe valeu bastante prestígio junto à Coroa e a promoção, no ano seguinte, a brigadeiro de Cavalaria.
Mas manter-se afastado de polêmicas não era com ele. Passada a guerra, envolveu-se em sucessivos conflitos com a Câmara de Porto Alegre. O primeiro atrito ocorreu em maio de 1777, quando mandou deter vereadores sob a alegação de que eles continuavam residindo na antiga capital, Viamão. Sua verdadeira intenção era pressioná-los a liberar recursos para o reparo de uma ponte. Passados quatro dias, eles concordaram em pagar a quantia exigida. No ano seguinte, o governador ordenou nova detenção de vereadores, com o pretexto de que a Câmara deveria pagar os aluguéis da casa do “mestre de meninos”, um professor primário. Em 1779, mandou prender o vereador mais velho da Câmara, Brás de Freitas Guimarães, por ter se negado a dar informação a um requerimento seu.
O que estava por trás dessa perseguição à Câmara era uma suposta aliança entre os vereadores e o coronel Rafael Pinto Bandeira, antigo desafeto de José Marcelino. A rixa vinha desde o início da década de 1770, mas, diante da conjuntura de guerra, o governador não podia dispensar os serviços militares dos poderosos. Em uma carta daquele período, acusou Pinto Bandeira de contrabandista, mas alegava não poder puni-lo, repetindo uma máxima muito utilizada pelos administradores coloniais: “Me achei na necessidade de fazer dos ladrões fiéis”. Ou seja, era preciso fechar os olhos a certas irregularidades.
No entanto, pacificada a capitania, José Marcelino reabriu as investigações contra o desafeto, determinando sua prisão. Desta vez, perdeu a queda de braço: o caso chegou ao Rio de Janeiro, onde um Conselho de Guerra mandou reconduzir Rafael Pinto Bandeira ao seu posto e determinou a saída do brigadeiro José Marcelino do governo do Continente do Rio Grande.
De volta ao Rio de Janeiro, já com idade relativamente avançada para a época – tinha 46 anos –, José Marcelino tomou uma providência fundamental para melhorar sua condição social: casou-se. A escolhida foi D. Joana Corrêa de Sá e Castro, descendente direta do poderoso Salvador Corrêa de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro por três vezes (1637-1642, 1648 e 1659-1660) e responsável pela libertação de Angola do domínio holandês. O casamento foi em setembro de 1781, na freguesia de Santo Antônio da Jacutinga (atual Nova Iguaçu), e um ano depois houve o batismo de sua primeira filha, Maria Inácia.
Em fins da década de 1770, José Marcelino já havia manifestado ao vice-rei o desejo de regressar a Portugal. Alegando que “suas moléstias” o tornavam “incapaz de governar”, pretendia “descansar à minha Casa e Província de Trás os Montes”. A licença veio, enfim, em 1783. E ele não só conseguiu permissão para voltar, como recuperou seu verdadeiro nome.
Quase vinte anos depois de sua vinda para o Brasil, estava reabilitado: retornava como brigadeiro, casado em uma das melhores famílias da terra e ainda por cima nomeado governador de sua cidade natal. A carreira de Sepúlveda, no entanto, estava longe do fim.
Estabelecido em Bragança, provavelmente em situação financeira confortável, faltava-lhe a promoção social que conduzisse ao enobrecimento. Isto ocorreu em 1789, quando se tornou fidalgo da Casa Real. Passados mais alguns anos, obteve uma carta régia com nomeação para governador das armas de Trás-os-Montes, um dos mais elevados postos militares de Portugal.
Do alto do nobre posto, ainda participou com destaque de um episódio marcante na história de Portugal: a guerra de libertação do domínio francês, em 1808. É considerado o líder da chamada Revolução Transmontana, iniciada por ele para expulsar os invasores. Do Rio de Janeiro, o príncipe regente D. João soube reconhecer o valoroso militar, nomeando-o para o Conselho da Guerra no ano seguinte.
Sepúlveda morreu em 1814, exatamente meio século depois de ter sido condenado à morte. A decisão de poupar-lhe a vida não poderia ter sido mais benéfica para o Império lusitano. Mesmo encrenqueiro e desobediente, ele ajudou Portugal em duas frentes: a garantir a fronteira meridional da América e a resistir contra invasores franceses na Europa. Seja como José Marcelino, seja como Manuel, não há dúvida: ele inscreveu seu(s) nome(s) na História.
Fábio Kühn é professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de “José Marcelino de Figueiredo, governador do Continente do Rio Grande”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, v. 140, 2005).
Saiba Mais - Bibliografia:
CAVALCANTI, Nireu. Crônicas Históricas do Rio Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
MACEDO, Francisco Riopardense de. O Aniversário de Porto Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorial, 2004.
SPALDING, Walter. Pequena História de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967.
VELLINHO, Moysés. “Um Sepúlveda no Governo da Capitania de São Pedro” in: Fronteira. Porto Alegre: Ed. Globo/UFRGS, 1975.
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Manuel de Sousa Sepúlveda
MANUEL DE
SOUSA SEPÚLVEDA
Fidalgo das campanhas da Índia: ? – 1552
1552: Comandado por D. Manuel de Sousa Sepúlveda
parte de Cochim (Índia), rumo a Lisboa, o galeão São João, o qual
vem a naufragar nas costas do Natal. De Sepúlveda, o comandante, apenas se
conhece a tragédia que o vitimou, também à sua esposa e filhos e à maioria
dos seus companheiros de viagem. E conhece-se porque o primeiro relato deste
naufrágio é recolhido e depois enfeixado, juntamente com outros opúsculos de
outros naufrágios (os disputados romances de cordel), na História
Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito, reverso da epopeia dos
Descobrimentos, e cujo primeiro tomo é editado em 1735. O relato foi redigido
por autor anónimo talvez sobre informações de Álvaro Fernandes, guardião da
nave, e pela primeira vez impresso cerca de 1554. Camões, no Canto V de Os Lusíadas,
põe o Adamastor a profetizar o acontecimento, três estâncias. Ainda sobre o
tema, o poeta quinhentista Jerónimo Corte-Real escreve um poema épico
intitulado Naufrágio e lastimoso sucesso de Manuel de Sousa Sepúlveda
e Dona Leonor de Sá, sua mulher e filhos, postumamente impresso em 1594.
|
JUNTO AO CAIS DE PEDRA
|
Fim de
tarde. Numa taverna, junto ao cais de pedra de Alfama, em Lisboa, dois velhos
marinheiros estão sempre a esgatanhar-se. Pedro "Má Fortuna", o
moreno, tange o alaúde e entoa, lamenta, geme:
- O São
João já se afunda, foi por divina vontade...
Paulo
"Tiro e Queda", o de pele mais coada, interrompe, contesta:
- É falso!
Carregados como íamos, foi por desleixo dos homens.
Está
ensarilhado o confronto. Diz o primeiro: levávamos pimenta pouca.
O segundo contradiz: a nau, de outras mercadorias, levava excesso de
carga. Novo lamento: desígnios da Providência. Novo
ataque:imprevidência dos homens, isso sim! Remata o Pedro
"Má Fortuna":
- Deus é
quem sabe, Deus é quem pode, Deus é quem manda.
Contrapõe
o Paulo "Tiro e Queda":
- E se os
homens entram em desmando, por acaso a culpa cabe a Deus? Tão chorão és tu
que, sem dar por isso, até cais na impiedade...
Levanta-se,
exalta-se, gesticula, berra:
- És
deveras apoucado. Nem reparas que desmando, ou desleixo, é atulhar um galeão
de fardaria em barda, que sobe no convés até à altura dos castelos; é
fazer-se ao mar em lenho apodrecido e vem uma vaga forte e logo parte o leme
em dois e leva uma das metades; é içar pano velho e roto e vem uma súbita rajada
que o rasga todo. Querer comer um boi inteiro numa única refeição, esse é o
desmando maior, cobiça dos nossos fidalgos que fazem a carreira da Índia,
gula tão desmedida que morrem enfartados os comilões. Perdem-se e, por eles,
com eles vamos nós à perdição. Saber não é crença, é querença de experimentar
para avaliar melhor. O que te faz falta, ó meu chorão, é pontaria de tiro e
queda...
Levanta-se
também o Pedro "Má Fortuna". Cada qual finca-se no seu terreno e
gritam um com o outro, assanhados batem com as canecas na mesa, insultam-se, fideputa
ruim, pagão, sáfio bargante, ímpio, homem rascão. Atracam-se para medir
forças. Os mais novos, eu entre eles, tratamos de apartá-los. De lágrimas nos
olhos, os dois velhos acabam porém por se abraçar. Bêbedos? Certamente, mas
não apenas por vinho... Atravessaram juntos o mesmo e grande perigo; quer
queiram ou não, apesar das fúrias breves e destemperos de linguagem,
irmanados quedaram para sempre.
Sossegam,
já sorriem do confronto. Mando vir outra canada de vinho, encho as três
canecas. Enquanto bebemos, eles mais do que eu, tento desenlear aquele passo
que tanto os atormenta.
|
|
TEMPESTADE
|
|
Com
avantajado lastro de mercadorias, a 3 de Fevereiro de 1552 larga de Cochim,
rumo a Lisboa, o galeãoSão João. É data já tardia para apanharmos
ventos de feição, mas não podíamos ficar ali mais um ano à espera dos ventos
bons. Já dizia D. Afonso de Albuquerque que é preciso andar depressa, sacar
do Oriente quanto mais possamos no menor dos tempos. Deveríamos ter partido
em fins de Dezembro mas largamos só em Fevereiro. Seja o que Deus
quiser, dizem uns. É desastre anunciado, dizem outros.
O São
João é comandado por D. Manuel de Sousa Sepúlveda, fidalgo mui nobre
e bom cavaleiro, amigo de amparar os necessitados; na Índia gastou em seu
tempo mais de cinquenta mil cruzados em dar de comer a muita gente. Com ele
seguem D. Leonor de Sá, sua esposa, e dois verdes meninos, filhos do
casal, e ainda um terceiro, bastardinho de Manuel de Sousa. A bordo vão
também os fidalgos Pantaleão de Sá (cunhado do comandante), Tristão de Sousa,
Diogo Mendes Dourado de Setúbal e Amador de Sousa. Ainda soldados de
torna-viagem, o mestre, o contramestre e o piloto da nave, carpinteiros,
calafates e guardiães, mulheres, aias e crianças, para além dos muitos
marinheiros e dos escravos em maior número.
Por causa
dos ventos ponteiros e das ruins velas que trazemos, tardamos em avistar o
Cabo da Boa Esperança. Manuel de Sousa pede então a André Vaz, o piloto, que
mais se aproxime de terra. Ele atende e assim começa a nossa perdição. Somos
apanhados por ventos que, num dia, sopram de poente, e noutro sopram de
levante. O capitão chama o mestre e o piloto e pergunta-lhes o que se deve
fazer com aquele tempo e eles respondem que será bom conselho arribar. Mas
têm de adiar o plano porque mais furiosa se torna a tempestade e uma vaga
parte ao meio o leme podre e leva uma das metades e súbitas rajadas rasgam e
levam as velas e outras não há de reserva. Aflição e, no meio da tormenta,
sob o comando de Manuel de Sousa, é repartida a gente para cada uma das
tarefas; da madeira que há a bordo, tentamos fazer um novo leme; de alguma
roupa que trazemos de mercadorias, tentamos fazer algum remédio de velas com
que possamos arribar a Moçambique. Mas, para não irmos a fundo a pique,
largamos tudo e corremos a cortar o mastro da proa que nos está abrindo a
nau.
Diz o
Pedro "Má Fortuna":
- Todos,
mas todos, até fidalgos, metemos ombros ao trabalho sem entre nós haver
distinção. Foi passo bonito, lembras-te?
Contradiz
o Paulo "Tiro e Queda":
- No
artigo da morte Deus não faz distinção entre nobreza e plebe. Por que
haveriam os homens de fazê-la?
|
NAUFRÁGIO
|
|||||||||||||||||
No dia 8
de Junho começa a ventania, e também a correnteza, a empurrar para terra a
nau desgovernada e já aberta, só por milagre é que se sustenta ainda sobre as
ondas. Manuel de Sousa manda baixar uma manchua, que é uma das muitas
embarcações pequenas que todas as naus levam a bordo. A missão dos remadores
será descobrirem praia onde melhor possamos encalhar. Calcula o comandante
poder desembarcar toda a gente e depois, do galeão, recolher armas e
mantimentos, toda a fazenda que possamos, para procedermos a trocas em terra
de cafres e melhor nos defendermos. Pensa ainda poder construir dos destroços
um caravelão que leve recado a Sofala, para dali recebermos algum socorro.
Volta a
manchua à nau. Avisam os remadores que, na costa, há apenas uma praia, o resto
é toda ela de rochedos. Na deriva, quando o galeão passa em frente à praia
indicada, lançamos âncora e baixamos um batel. A muito custo, conseguem os
homens fixar em terra uma segunda âncora.
Amaina o
vento e Manuel de Sousa pede ao mestre e ao piloto que o ponham em terra,
juntamente com a sua mulher e filhos e mais vinte homens, e eles os embarcam
no batel. Varando as ondas, alcançam por fim a praia.
Torna o
vento a soprar com tanto ímpeto e o mar a crescer tanto que as três manchuas
que vão, a seguir, demandar terra, se perdem e com elas os marinheiros.
Na manhã
do terceiro dia o galeão está preso apenas pela amarra em terra, porque a
outra se soltou do fundo falso. Vendo que a nau corre perigo de ser arrastada
para o pego, André Vaz, o piloto, diz:
- Irmãos,
antes que a nau se abra e vá ao fundo, quem quiser embarcar comigo naquele
batel o poderá fazer.
Com grande
trabalho embarcam quarenta pessoas, entre as quais o Paulo "Tiro e
Queda". E tão grosso anda o mar que atira o batel, feito em pedaços, no
meio da praia mas, por milagre, dessa batelada ninguém morre.
Neste meio
tempo, anda Manuel de Sousa pela praia, a acudir aos náufragos, e a
encaminhá-los para junto de uma grande fogueira que acendera, por causa do
muito frio que faz aqui nas terras do Natal.
Por fim a
nau assenta no fundo e logo se parte pelo meio, do mastro à vante um pedaço e
outro do mastro à ré; e daí a obra de uma hora, aqueles dois pedaços se fazem
em quatro. A caixaria da fazenda vem à tona, e sobre ela lançam-se as gentes,
procurando algum apoio para alcançar terra. Morrem, neste lance, mais de
quarenta portugueses e setenta escravos. Os outros vêm a terra, uns por
baixo, outros por cima, no rolo do mar. Muitos de nós feridos e rasgados
pelos pregos e madeirame, entre os quais o Pedro "Má Fortuna".
Quatro horas depois o galeão está desfeito e dele o mar devolve apenas destroços.
Sobreviventes são cerca de 200 portugueses e 300 escravos.
Diz o
Pedro:
- Má
fortuna, má fortuna, estava escrito lá em Cima, ninguém foge ao seu
destino... Desventurado Manuel de Sousa.
Contradiz
o Paulo:
- Se está
escrito lá em Cima eu cá não sei, mas estou em crer que a sorte se escreve
aqui em baixo. .Bem-aventurado André Vaz, devo-lhe a vida; eu e mais
quarenta.
|
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
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