O Naufrágio de Sepúlveda
na narrativa romântica do brasileiro Pereira da
Silva:
Jerónimo Corte-Real (Crónica do Século XVI)
E quantos esse mar tem
sumidos,
que não parecem,
e quam
cedo cá esquecem,
sem
lembrarem a ninguém.
(João Roiz
de Castelo Branco,
Cancioneiro
Geral, 1516)
Ao escrever a narrativa histórica Jerónimo Corte Real,
dada à estampa em 1840 e reeditada em 1865, o romântico brasileiro João Manuel
Pereira da Silva recriou ficcionalmente, nas páginas finais, a génese de uma
das últimas obras do escritor quinhentista português: a epopeia trágica do Naufrágio
e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda (1594),
sucesso trágico já celebrado por outros poetas coevos. Demonstrando a
influência do Camões garrettiano na configuração do perfil de Jerónimo
Corte Real, o seu relato cronístico coincide com a revalorização da literatura
de naufrágios, tão congenial à psicologia romântica. Deste modo, a narrativa de
Pereira da Silva presta-se a um breve, mas significativo exercício de
comparativismo literário.
1. Fortuna do Naufrágio de Sepúlveda
Desmentindo os versos de João Roiz de Castelo Branco,
citados em epígrafe, entre as mais célebres tragédias marítimas de toda a
História portuguesa está certamente o Naufrágio de Sepúlveda, que deu
origem a uma rica e conhecida tradição intertextual e interdiscursiva, desde
a segunda metade do séc. XVI até à literatura contemporânea (cf. Martins,
1997). Publicado anonimamente em 1555, logo depois desta tragédia marítima
ter ocorrido, o relato do Naufrágio de Sepúlveda depressa se tornou num
caso triste e digno de memória na cultura e literatura portuguesas. A sua
ávida leitura pelo povo mais simples, bem como pelos nobres e letrados,
desencadeou edições sucessivas deste folheto de cordel[i].
Ainda antes da obra de Jerónimo Corte-Real, dois
prestigiados poetas quinhentistas imortalizaram a tragédia de Sepúlveda: Luís
de Camões, em 1572, pela boca do terrível Adamastor (Os Lusíadas, Canto
V, est. 46-47); e Luís Pereira Brandão, na esquecida Elegíada (Canto
VI) de 1588. Como consequência ou sintoma dessa popularidade, o Naufrágio de
Sepúlveda inspirou variadíssimos autores, desde a literatura quinhentista
até à actualidade. A triste história de Sepúlveda ultrapassou mesmo as
fronteiras nacionais, inspirando outros autores, na escrita poética, ficcional
ou dramatúrgica, com destaque para Lope de Vega e Tirso de Molina, bem como
algumas peças do teatro novilatino dos jesuítas de seiscentos.
Ainda em finais do séc. XVI, Jerónimo Corte-Real terá
pensado que a tocante tragédia de Sepúlveda era merecedora de uma nova e uma
mais dilatada celebração. Além disso, há ainda uma razão afectiva, já que o
escritor estava ligado por laços de parentesco às personagens da tragédia
marítima — a sua esposa era prima de D. Leonor de Sá, esposa de Sepúlveda. O
longo título deste poema épico, de fundo elegíaco e mundividência maneirista,
rezava assim na sua edição póstuma: Naufrágio e lastimoso sucesso da
perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos
vindo da Índia para este Reino na nau chamada o galião grande S. João que se
perdeu no cabo de Boa Esperança na terra do Natal. E a peregrinação que
tiveram rodeando terras de cafres mais de 300 léguas até sua morte [ii]. Num total de 17 cantos, escritos em decassílabos
brancos, esta longa narrativa poética foi considerada pelo poeta a "mais
filha do seu engenho", alcançando uma popularidade bem superior às seus
outros poemas históricos: Sucesso do Segundo Cerco de Diu... (1546) e Espantosa
e Felicíssima Vitória... (1575).
Além das fontes historiográficas (Diogo do Couto, Gian
Petro Maffei, Manuel de Faria e Sousa, etc.), uma das grandes obras
inspiradoras da longa tradição intertextual que se gerou à volta do Naufrágio
de Sepúlveda, dentro e fora das fronteiras da literatura portuguesa, terá
sido justamente este canto épico de Jerónimo Corte-Real. De facto, o seu Naufrágio
de Sepúlveda foi a mais conhecida obra poética do autor (cf. Martins,
1997: 67-70). Como comprovativo da assinalável recepção crítica desta obra,
hoje praticamente ignorada, assinale-se que o seu longo poema Naufrágio de
Sepúlveda foi reeditado, em pleno Romantismo[iii], conhecendo, aliás, tradução para o francês por
Ortaire Fournier (Le Naufrage de Sepulveda et de Lianor de Sá. Poème de
Hieronimo Corte-Real)[iv] e, já antes, embora de uma forma abreviada, para
o castelhano, por Francisco de Contreras (A Nave Trágica de la India de
Portugal)[v].
O séc. XIX, sobretudo o Romantismo da primeira metade
desta centúria, deixou-se fascinar pelo imaginário marítimo da Tempestade/Naufrágio,
tantas vezes seduzido por histórias de piratas, corsários e outros aventureiros
marítimos mais ou menos trágicos. O homem romântico deleita-se com o horrendo
espectáculo das tempestades e dos naufrágios marítimos. A grandiosidade da
convulsão dos elementos e o trágico cenário da iminência da morte são uma
manifestação da omnipotência da Natureza e do poder criador, e, ao mesmo tempo,
uma simbólica alegoria da tumultuosidade dos sentimentos humanos (tormenta
do coração)[vi].
O extenso poema do romântico brasileiro Cruz e Sousa,
intitulado "Naufrágios (Desterro)", por exemplo, é manifestamente
devedor deste imaginário romântico, inspirado por imagens privilegiadas da
conflituosidade interior do poeta. A morte no mar sempre causou profunda
impressão nos sobreviventes que testemunhavam essas tragédias, nos que ouviam
relatos de naufrágios, ou nos poetas que os reviviam e recriavam com maior ou
menor imaginação e dramatismo: "Morrer no mar, os nervos contraídos,/
Numa asfixia atroz, cerrando os dentes,/ Num abismo de dores e de gemidos,/ De
maldições e de uivos de descrentes; // Morrer no mar, sem o farol amigo,/ Esse
farol que os náufragos anima,/ Fora de protecção, fora de abrigo,/ Sem sequer
uma luz no espaço, em cima" (1995: 381).
Como vemos, no seio da cultura romântica e à luz desta
predisposição estética e psicológica, o Naufrágio de Sepúlveda foi um
das narrativas mais revalorizadas, quer através da leitura do anónimo relato
quinhentista, editado isoladamente e, mais tarde, coligido nos dois volumes da História
Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito, em 1735-36; quer também na
escrita de textos poéticos, narrativos e teatrais sobre a tragédia de
Sepúlveda; quer ainda na reedição de obras inspiradas nesta tragédia marítima,
como o poema épico do quinhentista Jerónimo Corte-Real.
2. Narrativa cronística
sobre Jerónimo Corte-Real
Em pleno Romantismo brasileiro, o historiador e escritor
João Manuel Pereira da Silva (1818-1898) não resistiu à sugestão do relato do Naufrágio
de Sepúlveda, embora de um modo indirecto, mas nem por isso menos digno de
interesse. O seu contributo para a historiografia e para a literatura
brasileiras, incluindo a portuguesa, é assinalável. Entre outras obras,
publicou: D. João de Noronha (1840), Plutarco Brasileiro (1848), Varões
Ilustres do Brasil nos Tempos Coloniais (1858), Manuel de Morais,
Crónica Brasileira do Século XVII (1866), Aspásia (1873) e Filinto
Elísio e a sua Época (1891). Incansável e apressado antologista, editou
ainda em dois volumes um Parnaso Brasileiro (1843), o Plutarco
Brasileiro (1848) e Varões ilustres do Brasil nos tempos coloniais
(1858)[vii].
Em 1840, este digno representante da cultura lusíada em
terras de Santa Cruz publicava, nas páginas do Jornal do Comércio (Rio
de Janeiro), uma breve narrativa histórica centrada na figura do escritor
quinhentista português Jerónimo Corte-Real (1530-1588), pertencente à família
dos pioneiros descobridores e colonizadores da Terra Nova (Canadá). Vinte e
cinco anos depois, reescrevia a sua narrativa, intitulada Jerónimo
Corte-Real (Crónica do Século XVI):
Manifestando-me
porém vários amigos o desejo de conhecer aquele ensaio de romance, um dos primeiros
da literatura portuguesa moderna, pois que viu a luz do dia nos anos de 1839; e
dando-me ao trabalho de revê-lo, achei-o tal e tão incompleto e minguado, que
me não animaria a oferecê-lo actualmente ao público, se lhe consentisse
mostrar-se como nascera e se apresentara ao mundo (Pereira da Silva, 1865:
2-3).
Seguindo o modelo arquitextual de Alexandre Herculano e
de Almeida Garrett, trata-se de uma narrativa histórica, subgénero muito em
voga no seio do Romantismo oitocentista europeu. Curiosamente, como assinalam
os historiadores da Literatura Brasileira, Pereira da Silva mostrou uma
especial predilecção pelos temas de inspiração portuguesa e até por um estilo
mais luso do que brasileiro, como se pode inferir pelo assunto escolhido para
várias das suas obras (cf. Moisés, 1984: 61-62).
Estruturada em 12 capítulos, esta crónica narrativa
idealiza, à maneira romântica (tal como Garrett e outros fizeram com Camões) a
figura do cavaleiro-escritor Jerónimo Corte-Real. Porém, é legítimo questionar:
qual a razão para um romântico brasileiro se fixar na figura de um esquecido
poeta quinhentista? Apesar de não possuirmos muitos dados históricos sobre o
percurso histórico de Corte-Real, bem como sobre a sua relação com os
escritores do seu tempo, há pelo menos duas ideias que devemos ter presentes.
Primeiro, tal como outros membros da sua família,
Jerónimo Corte-Real teve uma existência preenchida por trabalhos militares,
particularmente na Índia portuguesa que, segundo algumas fontes, nobilitaram a
sua vida de nobre distinto, pertencente à família dos malogrados descobridores
da Terra Nova. Por conseguinte, o imaginário romântico encontra logo aqui uma
atraente aura de heroísmo e de tragédia.
Depois, sendo um poeta admirado pelos mais relevantes
nomes da literatura do seu tempo, a publicação d'Os Lusíadas em 1572 com
a subsequente e absolutizante canonização da epopeia camoniana,
particularmente a partir da crítica seiscentista, eclipsou gradualmente outras
obras de interesse, ensombrando em particular as outras epopeias quinhentistas.
A hermenêutica de um erudito crítico, como foi Manuel de Faria e Sousa, chega a
ser injusta e parcial diante dos poetas contemporâneos de Camões, atribuindo
indevidamente ao Poeta textos de outros autores e denegrindo a valia estética
de outros tantos.
Deve-se sobretudo à literatura e crítica castelhanas de
Seiscentos algumas das mais significativas manifestações de valorização da
obra poética de Corte-Real, poeta que chega a ser equiparado ao próprio
Camões. Se é verdade que parte da sua obra denota influência camoniana, isso
não significa que a sua poesia seja uma manifestação epigonal de Camões e da
matéria épica de Quinhentos (cf. Figueiredo, 1987: 369-381). O que é certo é
que, a pouco e pouco, a obra de Corte-Real foi sendo relegada para um duradouro
esquecimento.
Perante estes dois factos, ressalta à vista o objectivo
do romântico brasileiro: se Garrett tinha idealizado a vida de Camões, figura
tutelar do Romantismo luso, logo a partir das primeiras manifestações da
sensibilidade pré-romântica, porque não proceder do mesmo modo com a injustiçada
figura do cavaleiro-poeta Jerónimo Corte-Real? Como assinala oportunamente um
dos discípulos paulistanos de Fidelino de Figueiredo, o crítico Carlos Assis
Pereira (1958: 29), este Corte-Real recriado pelo romântico Pereira da Silva é
um "segundo Camões", envolvido numa existência idealmente
romantizada. Para que possamos ter uma ideia da obra, o enredo passional
recriado por Pereira da Silva pode ser resumido deste modo:
(...) um
Corte Real espadachim e guerreiro, que, matando num duelo o irmão da mulher
amada, D. Lianor de Vasconcelos, e sendo por causa disso repelido por ela,
procura esquecer o crime involuntário, indo lutar para a África. Sofre
tormentas e um naufrágio, cai prisioneiro em Alcácer-Quibir e padece longo
cativeiro, durante o qual vem a saber que o seu companheiro de trabalhos
forçados, Manuel de Mendonça, é o seu próprio pai, já então velho e
alquebrado. Havendo sido libertados do cativeiro, pelo resgate, regressam ambos
a Portugal. Em Lisboa, Corte Real publica o poema épico Segundo Cerco de Diu.
Vive serodiamente perturbado pela paixão a Lianor, que de há muito ingressara
na vida religiosa. Refugiando-se na Quinta da Palma, em Évora, ali lhe morre
nos braços o pai, e sentindo também apoximar-se a hora da sua morte, termina
uma nova epopeia, o Naufrágio de Sepúlveda, e lê para os circunstantes
algum trecho dela. Morre assistido espiritualmente pelo seu amigo Frei Luís de
Sousa. Corria o ano de 1591 (Pereira, 1958: 29-30).
Como se pode ver, são vários os ingredientes que
aproximam este enredo do texto poético e da visão romântica de Camões, tal como
a configurou paradigmaticamente Garrett, em 1825: duelos, lances passionais,
amores contrariados e infelizes, cenário de Sintra, viagens, degredo, incompreensões,
etc. Entre as inverosimilhanças da crónica romântica de Pereira da Silva,
ressalte-se o encontro entre o seu Jerónimo Corte-Real e Luís de Camões no Cap.
III — Conselho. Amargurado e movido pelos remorsos do seu crime passional,
Corte-Real vai-se encontrar com o grande Camões, respeitado e admirado
paradigma do patriota, do poeta e do amante. Incompreendido e abandonado pelos
seus contemporâneos, o Poeta vive na miséria, é "um homem velho e gasto,
não pela idade, mas pelos trabalhos da vida e desgostos do mundo" (1865:
50). Camões amigo e conselheiro que Corte-Real procurava ia sobrevivendo das
esmolas que o pobre escravo Jau (António) pedia pelas ruas de Lisboa[viii]. Perante a imagem do guerreiro da Índia, do
cantor da Pátria e do prostrado amante de Catarina, Corte-Real sente-se
impelido a acompanhar D. Sebastião a Alcácer-Quibir, para a célebre e fatídica
batalha que se efectuaria a 4 de Agosto de 1578.
Não sendo este o momento para apreciar o valor estético
da obra, nem para discutir as fragilidades da intriga romântico-biográfica de
Pereira da Silva, detenhámo-nos apenas nas referências ao Naufrágio de
Sepúlveda de J. Corte-Real. Assim, no XII e derradeiro capítulo da sua
crónica biográfica, Jerónimo Corte-Real é-nos descrito na sua quinta de Palma,
em Évora, recolhido depois de tantos e amargurados trabalhos. Foi nesse retiro
que recebeu a notícia da morte da sua antiga amada, nessa altura soror Lianor
da Madre de Deus, abadessa do convento de Nossa Senhora da Ajuda. Depois das
dolorosas mortes da amada e do próprio pai, Corte-Real vai-se preparando também
para a sua morte.
Pelo ano de 1591, mandou chamar urgentemente o seu amigo
e confessor Frei Luís de Sousa. Ainda com forças para escrever a sua última
obra poética, o monge dominicano encontrou-o no leito, quebrantado e rodeado
de folhas manuscritas dos primeiros versos do Canto XVII do seu Naufrágio de
Sepúlveda: "Quem olhasse para elas encontraria gravados os seguintes
versos, que escaparam naquele momento à inspiração do vate ardente e melancólico"
(1865: 225)[ix]. Perante o grande escritor dominicano, o
moribundo Corte-Real leu ainda outros fragmentos do seu amado Naufrágio de
Sepúlveda, como o epitáfio do mesmo canto XVII, como forma de imortalização
da bela figura da esposa de Sepúlveda, que morrera tragicamente na inóspita
terra dos cafres:
Aquela
encarecida formosura,
Aquele
preço e graça desusada,
Tão
formosa quão falta de ventura,
Ingrata
sempre tanto quanto amada,
Uma
pequena e triste sepultura
Em remoto
lugar tem-na encerrada!
Fique de
tão cruel e fera história
Deste modo, depois de ter acabado de redigir o seu último
grande poema épico, aguardava pacificamente Corte-Real a sua própria morte.
Antes de encetar essa última viagem, depois das atribulações do mar da vida,
tinha o pressentimento de que não chegaria a publicar em vida este poema,
confiando-o antão ao seu genro, António de Sousa: "Posso agora morrer.
Venha a parca amiga arrancar-me do mundo, e reunir-me a Lianor querida lá em
céus mais puros" (1865: 228). Aliás, como lhe confidenciava o garrettiano
Manuel de Sousa Coutinho, com a perda da independência política, aconteceu o
próprio naufrágio da Pátria, acompanhado pela morte de grandes escritores:
Luís de Camões, Frei Heitor Pinto e Luís Pereira Brandão, entre outros. Sob o
domínio de Castela, Portugal estava prostrado e de luto. Simbolicamente, a
dramática morte de Manuel de Sousa Sepúlveda e de D. Leonor de Sá pressagiavam
o trágico desaparecimento do monarca nos areais do Norte de África e, consequentemente,
o próprio naufrágio da Pátria, configurando uma expressiva alegoria sobre o
desastre de uma cultura expansionista que então inicia um irremediável ciclo de
decadência.
Imbuído da psicologia romântica, Pereira da Silva não se
esquece de acentuar a natureza autobiográfica e confessional do poema épico,
pondo na boca de Corte-Real estas palavras identificadoras do seu caso com a
tragédia de Sepúlveda, cuja bela Lianor lhe lembrava a sua amada, até pela
similitude onomástica, a sua querida Lianor:
Deixo sua
lembrança [de Lianor], lego traços da nossa vida, gravo testemunhos de nossos
amores e de nossas desventuras neste poema, que com o título de Naufrágio
de Sepúlveda pinta os casos miserandos e as paixões desgraçadas do capitão
Manuel de Sepúlveda e de Lianor de Sá. Ah! Lianor minha! (1865: 228).
Para mais expressivamente estabelecer
o paralelo entre a romantizada vida do seu biografado e o caso triste narrado
no seu Naufrágio de Sepúlveda, Pereira da Silva volta a citar um pequeno
excerto do poema épico (1865: 228): "Que caso aborrecido, que fortuna/ Tão
cruel te apartou destes meus olhos?/ Que nebrina mortífera, ou que vento/
Murchou a fresca flor da tua idade?/ Qual odioso rigor, qual parca injusta,/ De
tal vida cortou o doce fio?[xi].
Ouvido em confissão, Jerónimo Corte-Real despediu-se da
vida nas braços do religioso dominicano. Tinha cumprido o seu destino e
encerrado luminosa e artisticamente a sua existência com a redacção do sua
maior obra poética, o Naufrágio de Sepúlveda. A crónica biográfica
termina com uma afirmação panegírica sobre as duas personagens em cena:
Era esse
cadáver de Jerónimo Corte Real, poeta afamado da língua portuguesa, autor
imortal do Cerco de Diu e do Naufrágio de Sepúlveda. // Era esse
religioso frei Luís de Sousa, conhecido no mundo pelo nome de Manuel de Sousa
Coutinho, escritor primoroso da Vida de São Frei Bartolomeu dos Mártires
e da Crónica de São Domingos de Benfica (1865: 238).
Como vemos, o romântico Pereira da Silva não encerra a
sua obra sem enfatizar este encontro em inesperadas circunstâncias,
apresentando-o, implícita e simbolicamente, como a aproximação de dois grandes
clássicos da Língua e da Literatura portuguesas. Depois de ter associado o
percurso de Corte-Real ao de Camões, aproxima agora, no significativo explicit
da obra, o poeta do Naufrágio de Sepúlveda e o insigne prosador
dominicano.
Notas
[i] Antes da edição conjunta com outros relatos trágico-marítimos, o Naufrágio
de Sepúlveda conheceu um assinalável número de reedições posteriores, a
partir do séc. XVI: 1556, 1592, 1614, 1625 e 1633.
[iii] Lisboa, Typ. Rollandiana, 1840, depois de uma 2ª ed. setecentista (Lisboa,
Typ. Rollandiana, 1783). Aliás, ainda no contexto da cultura romântica,
destaquemos outras obras: António de Oliveira Marreca
redigia a narrativa trágico-marítima Manuel de Sousa de Sepúlveda,
editada nos fascículos d'O Panorama (Jornal Literário e Instrutivo),
vol. VII (1843). Ao mesmo tempo, a revista Revista Universal Lisbonense,
tomo IV (1844-45), p. 328, publicava em um texto intitulado “Comemorações.
Naufrágio de Sepúlveda”.
[iv] Ortaire Fournier
era cônsul em Lisboa e, mais tarde, refugiado político. A sua tradução do poema
de J. Corte-Real aparece na Revue
Lusitanienne [Lisboa], vol. I e II (1852), precedida de um breve texto introdutório
(I, pp. 30-33).
[v] Madrid, Luis Sanchez, 1624. Sobre a recepção desta e de outras obras do
poeta quinhentista, veja-se a informativa e bem elaborada e introdução de
Hélio J. S. Alves (cf. Corte-Real,
1998).
[vi] Ainda a acrescentar às obras anteriormente citadas, como exemplos deste
imaginário trágico-marítimo da literatura romântica, destaquem-se: depois de
ter publicado “Quadros Marítimos” (O Panorama, vol. XI, 1854), Francisco
Maria Bordalo edita Eugénio,
Romance Marítimo (Rio de Janeiro, 1846; Lisboa, 1854), recentemente
reeditado por Eunice Cabral nas edições Cosmos (1998); autor do poema narrativo
Romance Pátrio Marítimo (1870), também Celestino Soares publica Quadros Navais (Lisboa, 1844).
[vii] A crítica romântica portuguesa não se alheou da obra histórico-literária de
Pereira da Silva, como é o caso do pronunciamento de M. Pinheiro Chagas (1866: 221-230) sobre a História
da Fundação do Império Brasileiro. Depois de destacar a fundamentação do
seu imparcial trabalho de historiador, o crítico português chama a atenção para
o seu notável estilo literário. Neste capítulo, merecem-lhe elogio o efeito
dramático e visualista que Pererira da Silva consegue imprimir às suas
descrições.
[ix] O romancista romântico transcreve os primeiros doze versos do canto XVII,
dando assim início à elegíaca lamentação da morte de D. Leonor de Sá, esposa de
Sepúlveda: "Aos que nas procelosas, bravas ondas/ (...) / Inconstante,
cruel, impia fortuna" (cf. Corte-Real,
1979: 865).
[x] Ver Jerónimo Corte-Real (1979:
877). Recordemos que para Almeida Garrett,
alguns trechos deste Canto XVII constituíam as mais admiradas passagens do Naufrágio
de Sepúlveda de Corte-Real.
Bibliografia (referências):
1. Activa
Corte-Real, Jerónimo (1979), Obras de Jerónimo Corte-Real (Sucesso do Segundo Cerco de Diu
- Naufrágio de Sepúlveda - Auto dos Quatro Novíssimos do Homem - Elegias),
Porto, Lello & Irmão- Ed., Col. Tesouros da Literatura e da História
(introd., e rev. de M. Lopes de Almeida).
---
(1998), Poesia, Braga-Coimbra, Angelus Novus (introd., selec.,
fixação do texto e notas de Hélio J. S. Alves).
Pereira
da Silva,
João Manuel (1865), Jerónimo Corte-Real (Crónica do Século XVI), 2ª ed., Rio
de Janeiro, B. L. Garnier, Editor.
Souza, Cruz e (1995), Obra Completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
2. Passiva
Chagas, M. Pinheiro (1866), Ensaios Críticos, Porto, Em Casa da
Viúva Moré – Editora.
Figueiredo, Fidelino de (1987), A Épica Portuguesa no Século XVI, Lisboa,
IN-CM (segundo a ed. definitiva de 1950).
Martins, J. Cândido (1997), Naufrágio de Sepúlveda (Texto e
Intertexto), Lisboa, Replicação.
Moisés, Massaud (1994), História da Literatura Brasileira, vol. II, Romantismo/Realismo,
São Paulo, Cultrix.
Pereira,
Carlos Assis (1958),
"Garrett e o Brasil", separata de Ocidente [Lisboa], 1958.
J.
Cândido Martins
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