MANUEL DE
SOUSA SEPÚLVEDA
Fidalgo das campanhas da Índia: ? – 1552
1552: Comandado por D. Manuel de Sousa Sepúlveda
parte de Cochim (Índia), rumo a Lisboa, o galeão São João, o qual
vem a naufragar nas costas do Natal. De Sepúlveda, o comandante, apenas se
conhece a tragédia que o vitimou, também à sua esposa e filhos e à maioria
dos seus companheiros de viagem. E conhece-se porque o primeiro relato deste
naufrágio é recolhido e depois enfeixado, juntamente com outros opúsculos de
outros naufrágios (os disputados romances de cordel), na História
Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito, reverso da epopeia dos
Descobrimentos, e cujo primeiro tomo é editado em 1735. O relato foi redigido
por autor anónimo talvez sobre informações de Álvaro Fernandes, guardião da
nave, e pela primeira vez impresso cerca de 1554. Camões, no Canto V de Os Lusíadas,
põe o Adamastor a profetizar o acontecimento, três estâncias. Ainda sobre o
tema, o poeta quinhentista Jerónimo Corte-Real escreve um poema épico
intitulado Naufrágio e lastimoso sucesso de Manuel de Sousa Sepúlveda
e Dona Leonor de Sá, sua mulher e filhos, postumamente impresso em 1594.
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JUNTO AO CAIS DE PEDRA
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Fim de
tarde. Numa taverna, junto ao cais de pedra de Alfama, em Lisboa, dois velhos
marinheiros estão sempre a esgatanhar-se. Pedro "Má Fortuna", o
moreno, tange o alaúde e entoa, lamenta, geme:
- O São
João já se afunda, foi por divina vontade...
Paulo
"Tiro e Queda", o de pele mais coada, interrompe, contesta:
- É falso!
Carregados como íamos, foi por desleixo dos homens.
Está
ensarilhado o confronto. Diz o primeiro: levávamos pimenta pouca.
O segundo contradiz: a nau, de outras mercadorias, levava excesso de
carga. Novo lamento: desígnios da Providência. Novo
ataque:imprevidência dos homens, isso sim! Remata o Pedro
"Má Fortuna":
- Deus é
quem sabe, Deus é quem pode, Deus é quem manda.
Contrapõe
o Paulo "Tiro e Queda":
- E se os
homens entram em desmando, por acaso a culpa cabe a Deus? Tão chorão és tu
que, sem dar por isso, até cais na impiedade...
Levanta-se,
exalta-se, gesticula, berra:
- És
deveras apoucado. Nem reparas que desmando, ou desleixo, é atulhar um galeão
de fardaria em barda, que sobe no convés até à altura dos castelos; é
fazer-se ao mar em lenho apodrecido e vem uma vaga forte e logo parte o leme
em dois e leva uma das metades; é içar pano velho e roto e vem uma súbita rajada
que o rasga todo. Querer comer um boi inteiro numa única refeição, esse é o
desmando maior, cobiça dos nossos fidalgos que fazem a carreira da Índia,
gula tão desmedida que morrem enfartados os comilões. Perdem-se e, por eles,
com eles vamos nós à perdição. Saber não é crença, é querença de experimentar
para avaliar melhor. O que te faz falta, ó meu chorão, é pontaria de tiro e
queda...
Levanta-se
também o Pedro "Má Fortuna". Cada qual finca-se no seu terreno e
gritam um com o outro, assanhados batem com as canecas na mesa, insultam-se, fideputa
ruim, pagão, sáfio bargante, ímpio, homem rascão. Atracam-se para medir
forças. Os mais novos, eu entre eles, tratamos de apartá-los. De lágrimas nos
olhos, os dois velhos acabam porém por se abraçar. Bêbedos? Certamente, mas
não apenas por vinho... Atravessaram juntos o mesmo e grande perigo; quer
queiram ou não, apesar das fúrias breves e destemperos de linguagem,
irmanados quedaram para sempre.
Sossegam,
já sorriem do confronto. Mando vir outra canada de vinho, encho as três
canecas. Enquanto bebemos, eles mais do que eu, tento desenlear aquele passo
que tanto os atormenta.
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TEMPESTADE
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Com
avantajado lastro de mercadorias, a 3 de Fevereiro de 1552 larga de Cochim,
rumo a Lisboa, o galeãoSão João. É data já tardia para apanharmos
ventos de feição, mas não podíamos ficar ali mais um ano à espera dos ventos
bons. Já dizia D. Afonso de Albuquerque que é preciso andar depressa, sacar
do Oriente quanto mais possamos no menor dos tempos. Deveríamos ter partido
em fins de Dezembro mas largamos só em Fevereiro. Seja o que Deus
quiser, dizem uns. É desastre anunciado, dizem outros.
O São
João é comandado por D. Manuel de Sousa Sepúlveda, fidalgo mui nobre
e bom cavaleiro, amigo de amparar os necessitados; na Índia gastou em seu
tempo mais de cinquenta mil cruzados em dar de comer a muita gente. Com ele
seguem D. Leonor de Sá, sua esposa, e dois verdes meninos, filhos do
casal, e ainda um terceiro, bastardinho de Manuel de Sousa. A bordo vão
também os fidalgos Pantaleão de Sá (cunhado do comandante), Tristão de Sousa,
Diogo Mendes Dourado de Setúbal e Amador de Sousa. Ainda soldados de
torna-viagem, o mestre, o contramestre e o piloto da nave, carpinteiros,
calafates e guardiães, mulheres, aias e crianças, para além dos muitos
marinheiros e dos escravos em maior número.
Por causa
dos ventos ponteiros e das ruins velas que trazemos, tardamos em avistar o
Cabo da Boa Esperança. Manuel de Sousa pede então a André Vaz, o piloto, que
mais se aproxime de terra. Ele atende e assim começa a nossa perdição. Somos
apanhados por ventos que, num dia, sopram de poente, e noutro sopram de
levante. O capitão chama o mestre e o piloto e pergunta-lhes o que se deve
fazer com aquele tempo e eles respondem que será bom conselho arribar. Mas
têm de adiar o plano porque mais furiosa se torna a tempestade e uma vaga
parte ao meio o leme podre e leva uma das metades e súbitas rajadas rasgam e
levam as velas e outras não há de reserva. Aflição e, no meio da tormenta,
sob o comando de Manuel de Sousa, é repartida a gente para cada uma das
tarefas; da madeira que há a bordo, tentamos fazer um novo leme; de alguma
roupa que trazemos de mercadorias, tentamos fazer algum remédio de velas com
que possamos arribar a Moçambique. Mas, para não irmos a fundo a pique,
largamos tudo e corremos a cortar o mastro da proa que nos está abrindo a
nau.
Diz o
Pedro "Má Fortuna":
- Todos,
mas todos, até fidalgos, metemos ombros ao trabalho sem entre nós haver
distinção. Foi passo bonito, lembras-te?
Contradiz
o Paulo "Tiro e Queda":
- No
artigo da morte Deus não faz distinção entre nobreza e plebe. Por que
haveriam os homens de fazê-la?
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NAUFRÁGIO
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No dia 8
de Junho começa a ventania, e também a correnteza, a empurrar para terra a
nau desgovernada e já aberta, só por milagre é que se sustenta ainda sobre as
ondas. Manuel de Sousa manda baixar uma manchua, que é uma das muitas
embarcações pequenas que todas as naus levam a bordo. A missão dos remadores
será descobrirem praia onde melhor possamos encalhar. Calcula o comandante
poder desembarcar toda a gente e depois, do galeão, recolher armas e
mantimentos, toda a fazenda que possamos, para procedermos a trocas em terra
de cafres e melhor nos defendermos. Pensa ainda poder construir dos destroços
um caravelão que leve recado a Sofala, para dali recebermos algum socorro.
Volta a
manchua à nau. Avisam os remadores que, na costa, há apenas uma praia, o resto
é toda ela de rochedos. Na deriva, quando o galeão passa em frente à praia
indicada, lançamos âncora e baixamos um batel. A muito custo, conseguem os
homens fixar em terra uma segunda âncora.
Amaina o
vento e Manuel de Sousa pede ao mestre e ao piloto que o ponham em terra,
juntamente com a sua mulher e filhos e mais vinte homens, e eles os embarcam
no batel. Varando as ondas, alcançam por fim a praia.
Torna o
vento a soprar com tanto ímpeto e o mar a crescer tanto que as três manchuas
que vão, a seguir, demandar terra, se perdem e com elas os marinheiros.
Na manhã
do terceiro dia o galeão está preso apenas pela amarra em terra, porque a
outra se soltou do fundo falso. Vendo que a nau corre perigo de ser arrastada
para o pego, André Vaz, o piloto, diz:
- Irmãos,
antes que a nau se abra e vá ao fundo, quem quiser embarcar comigo naquele
batel o poderá fazer.
Com grande
trabalho embarcam quarenta pessoas, entre as quais o Paulo "Tiro e
Queda". E tão grosso anda o mar que atira o batel, feito em pedaços, no
meio da praia mas, por milagre, dessa batelada ninguém morre.
Neste meio
tempo, anda Manuel de Sousa pela praia, a acudir aos náufragos, e a
encaminhá-los para junto de uma grande fogueira que acendera, por causa do
muito frio que faz aqui nas terras do Natal.
Por fim a
nau assenta no fundo e logo se parte pelo meio, do mastro à vante um pedaço e
outro do mastro à ré; e daí a obra de uma hora, aqueles dois pedaços se fazem
em quatro. A caixaria da fazenda vem à tona, e sobre ela lançam-se as gentes,
procurando algum apoio para alcançar terra. Morrem, neste lance, mais de
quarenta portugueses e setenta escravos. Os outros vêm a terra, uns por
baixo, outros por cima, no rolo do mar. Muitos de nós feridos e rasgados
pelos pregos e madeirame, entre os quais o Pedro "Má Fortuna".
Quatro horas depois o galeão está desfeito e dele o mar devolve apenas destroços.
Sobreviventes são cerca de 200 portugueses e 300 escravos.
Diz o
Pedro:
- Má
fortuna, má fortuna, estava escrito lá em Cima, ninguém foge ao seu
destino... Desventurado Manuel de Sousa.
Contradiz
o Paulo:
- Se está
escrito lá em Cima eu cá não sei, mas estou em crer que a sorte se escreve
aqui em baixo. .Bem-aventurado André Vaz, devo-lhe a vida; eu e mais
quarenta.
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