Textos Históricos


O Naufrágio de Sepúlveda
na narrativa romântica do brasileiro Pereira da Silva:
Jerónimo Corte-Real (Crónica do Século XVI)




E quantos esse mar tem
sumidos, que não parecem,
e quam cedo cá esquecem,
sem lembrarem a ninguém.

(João Roiz de Castelo Branco,
Cancioneiro Geral, 1516)


            Ao escrever a narrativa histórica Jerónimo Corte Real, dada à estampa em 1840 e reeditada em 1865, o romântico brasileiro João Manuel Pereira da Silva recriou ficcionalmente, nas páginas finais, a génese de uma das últimas obras do escritor quinhentista português: a epopeia trágica do Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda (1594), sucesso trágico já cele­brado por outros poetas coevos. Demonstrando a influência do Camões garrettiano na configura­ção do perfil de Jerónimo Corte Real, o seu relato cronístico coincide com a revalorização da litera­tura de naufrágios, tão congenial à psicologia romântica. Deste modo, a narrativa de Pereira da Silva presta-se a um breve, mas significativo exercício de comparativismo literário.

            1. Fortuna do Naufrágio de Sepúlveda
            Desmentindo os versos de João Roiz de Castelo Branco, citados em epígrafe, entre as mais célebres tragédias marítimas de toda a História portuguesa está certamente o Naufrágio de Sepúlveda, que deu origem a uma rica e conhecida tradição inter­textual e interdis­cursiva, desde a se­gunda metade do séc. XVI até à literatura contemporânea (cf. Martins, 1997). Publicado anonimamente em 1555, logo depois desta tragé­dia marí­tima ter ocorrido, o relato do Naufrágio de Sepúlveda depressa se tornou num caso triste e digno de memória na cultura e lite­ratura portuguesas. A sua ávida leitura pelo povo mais simples, bem como pelos no­bres e letrados, desencadeou edições sucessivas deste folheto de cordel[i].
            Ainda antes da obra de Jerónimo Corte-Real, dois prestigiados poetas quinhentistas imor­taliza­ram a tragédia de Sepúlveda: Luís de Camões, em 1572, pela boca do ter­rível Adamastor (Os Lusíadas, Canto V, est. 46-47); e Luís Pereira Brandão, na esque­cida Elegíada (Canto VI) de 1588. Como consequência ou sintoma dessa popularidade, o Naufrágio de Sepúlveda inspirou variadíssimos autores, desde a literatura quinhentista até à actualidade. A triste história de Sepúlveda ultrapassou mesmo as fronteiras nacionais, inspirando outros autores, na escrita poética, ficcional ou drama­túrgica, com destaque para Lope de Vega e Tirso de Molina, bem como algumas peças do teatro novilatino dos jesuítas de seiscentos.
            Ainda em finais do séc. XVI, Jerónimo Corte-Real terá pensado que a tocante tragédia de Sepúlveda era merecedora de uma nova e uma mais dilatada celebração. Além disso, há ainda uma razão afectiva, já que o escritor estava ligado por laços de parentesco às personagens da tragédia marítima — a sua esposa era prima de D. Leonor de Sá, esposa de Sepúlveda. O longo título deste poema épico, de fundo elegíaco e mundividência maneirista, rezava assim na sua edição póstuma: Naufrágio e lastimoso su­cesso da perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos vindo da Índia para este Reino na nau chamada o galião grande S. João que se perdeu no cabo de Boa Esperança na terra do Natal. E a peregrinação que tiveram ro­deando terras de cafres mais de 300 léguas até sua morte [ii]. Num total de 17 cantos, escritos em decassílabos brancos, esta longa nar­rativa poética foi considerada pelo poeta a "mais filha do seu engenho", al­cançando uma populari­dade bem superior às seus outros poemas históricos: Sucesso do Segundo Cerco de Diu... (1546) e Espantosa e Felicíssima Vitória... (1575).
            Além das fontes historiográficas (Diogo do Couto, Gian Petro Maffei, Manuel de Faria e Sousa, etc.), uma das grandes obras inspiradoras da longa tradição intertextual que se gerou à volta do Naufrágio de Sepúlveda, dentro e fora das fronteiras da literatura portu­guesa, terá sido justamente este canto épico de Jerónimo Corte-Real. De facto, o seu Naufrágio de Sepúlveda foi a mais conhe­cida obra poética do autor (cf. Martins, 1997: 67-70). Como comprovativo da assinalá­vel recepção crítica desta obra, hoje praticamente ignorada, assi­nale-se que o seu longo poema Naufrágio de Sepúlveda foi reeditado, em pleno Romantismo[iii], conhecendo, aliás, tradução para o francês por Ortaire Fournier (Le Naufrage de Sepulveda et de Lianor de Sá. Poème de Hieronimo Corte-Real)[iv] e, já antes, embora de uma forma abreviada, para o caste­lhano, por Francisco de Contreras (A Nave Trágica de la India de Portugal)[v].
            O séc. XIX, sobretudo o Romantismo da primeira metade desta centúria, deixou-se fasci­nar pelo imaginário marítimo da Tempestade/Naufrágio, tantas vezes seduzido por histórias de piratas, corsários e outros aventureiros marítimos mais ou menos trágicos. O homem ro­mântico deleita-se com o hor­rendo espectáculo das tempestades e dos naufrágios marítimos. A grandiosidade da convulsão dos elementos e o trágico cenário da iminência da morte são uma manifestação da omnipotência da Natureza e do poder criador, e, ao mesmo tempo, uma sim­bólica alegoria da tumultuosidade dos sentimentos humanos (tormenta do coração)[vi].
            O extenso poema do romântico brasileiro Cruz e Sousa, intitulado "Naufrágios (Desterro)", por exemplo, é manifestamente devedor deste imaginário romântico, inspirado por imagens privilegiadas da conflituosidade interior do poeta. A morte no mar sempre causou pro­funda impressão nos sobreviventes que testemunhavam essas tragédias, nos que ouviam relatos de naufrágios, ou nos poetas que os reviviam e recria­vam com maior ou menor imaginação e drama­tismo: "Morrer no mar, os nervos contraídos,/ Numa asfixia atroz, cerrando os dentes,/ Num abismo de dores e de gemidos,/ De maldições e de uivos de descrentes; // Morrer no mar, sem o farol amigo,/ Esse farol que os náufragos anima,/ Fora de protecção, fora de abrigo,/ Sem sequer uma luz no espaço, em cima" (1995: 381).
            Como vemos, no seio da cultura romântica e à luz desta predisposição estética e psicoló­gica, o Naufrágio de Sepúlveda foi um das narrativas mais revalorizadas, quer através da leitura do anónimo relato quinhentista, editado isoladamente e, mais tarde, coligido nos dois volumes da História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito, em 1735-36; quer também na escrita de textos poéticos, nar­rativos e teatrais sobre a tragédia de Sepúlveda; quer ainda na reedição de obras inspiradas nesta tragé­dia marítima, como o poema épico do quinhentista Jerónimo Corte-Real.

          2. Narrativa cronística sobre Jerónimo Corte-Real
            Em pleno Romantismo brasileiro, o historiador e escritor João Manuel Pereira da Silva (1818-1898) não re­sistiu à sugestão do relato do Naufrágio de Sepúlveda, embora de um modo indirecto, mas nem por isso menos digno de interesse. O seu contributo para a historiografia e para a literatura brasileiras, incluindo a portuguesa, é assinalável. Entre outras obras, publicou: D. João de Noronha (1840), Plutarco Brasileiro (1848), Varões Ilustres do Brasil nos Tempos Coloniais (1858), Manuel de Morais, Crónica Brasileira do Século XVII (1866), Aspásia (1873) e Filinto Elísio e a sua Época (1891). Incansável e apressado antologista, editou ainda em dois vo­lumes um Parnaso Brasileiro (1843), o Plutarco Brasileiro (1848) e Varões ilustres do Brasil nos tempos coloniais (1858)[vii].
            Em 1840, este digno representante da cul­tura lusíada em terras de Santa Cruz publicava, nas páginas do Jornal do Comércio (Rio de Janeiro), uma breve narrativa histórica centrada na figura do escritor quinhentista português Jerónimo Corte-Real (1530-1588), pertencente à família dos pioneiros descobridores e colonizadores da Terra Nova (Canadá). Vinte e cinco anos depois, reescrevia a sua narrativa, intitu­lada Jerónimo Corte-Real (Crónica do Século XVI):

Manifestando-me porém vários amigos o desejo de conhecer aquele ensaio de romance, um dos pri­mei­ros da literatura portuguesa moderna, pois que viu a luz do dia nos anos de 1839; e dando-me ao traba­lho de revê-lo, achei-o tal e tão incompleto e minguado, que me não animaria a oferecê-lo actual­mente ao público, se lhe consentisse mostrar-se como nascera e se apresentara ao mundo (Pereira da Silva, 1865: 2-3).

            Seguindo o modelo arquitextual de Alexandre Herculano e de Almeida Garrett, trata-se de uma narrativa histórica, subgénero muito em voga no seio do Romantismo oitocentista europeu. Curiosamente, como assi­nalam os historiadores da Literatura Brasileira, Pereira da Silva mostrou uma especial predilecção pelos te­mas de inspiração portuguesa e até por um estilo mais luso do que brasileiro, como se pode inferir pelo assunto escolhido para várias das suas obras (cf. Moisés, 1984: 61-62).
            Estruturada em 12 capítulos, esta crónica narrativa idealiza, à maneira romântica (tal como Garrett e outros fizeram com Camões) a figura do cavaleiro-escritor Jerónimo Corte-Real. Porém, é legítimo questionar: qual a razão para um romântico brasileiro se fixar na figura de um esquecido poeta quinhentista? Apesar de não possuirmos muitos dados históricos sobre o percurso histórico de Corte-Real, bem como so­bre a sua relação com os escritores do seu tempo, há pelo menos duas ideias que devemos ter pre­sentes.
            Primeiro, tal como outros membros da sua família, Jerónimo Corte-Real teve uma existên­cia preen­chida por trabalhos militares, particularmente na Índia portuguesa que, segundo algumas fontes, nobilitaram a sua vida de no­bre distinto, pertencente à família dos malogrados descobrido­res da Terra Nova. Por conseguinte, o ima­ginário romântico encontra logo aqui uma atraente aura de heroísmo e de tragé­dia.
            Depois, sendo um poeta admirado pelos mais relevantes nomes da literatura do seu tempo, a publicação d'Os Lusíadas em 1572 com a subsequente e absolutizante canonização da epo­peia camoniana, particularmente a partir da crítica seiscentista, eclipsou gradualmente outras obras de interesse, ensombrando em particular as outras epopeias quinhentistas. A hermenêutica de um erudito crítico, como foi Manuel de Faria e Sousa, chega a ser injusta e parcial diante dos poetas contemporâneos de Camões, atribuindo indevidamente ao Poeta textos de outros autores e dene­grindo a valia estética de outros tantos.
            Deve-se sobretudo à literatura e crítica castelhanas de Seiscentos algumas das mais signifi­cativas manifestações de valorização da obra poética de Corte-Real, poeta que chega a ser equipa­rado ao próprio Camões. Se é verdade que parte da sua obra denota influência camoniana, isso não significa que a sua poe­sia seja uma manifestação epi­gonal de Camões e da matéria épica de Quinhentos (cf. Figueiredo, 1987: 369-381). O que é certo é que, a pouco e pouco, a obra de Corte-Real foi sendo relegada para um duradouro esquecimento.
            Perante estes dois factos, ressalta à vista o objectivo do romântico brasileiro: se Garrett ti­nha idealizado a vida de Camões, figura tutelar do Romantismo luso, logo a partir das primei­ras manifestações da sensibilidade pré-romântica, porque não proceder do mesmo modo com a injusti­çada figura do cavaleiro-poeta Jerónimo Corte-Real? Como assinala oportunamente um dos discí­pulos paulistanos de Fidelino de Figueiredo, o crítico Carlos Assis Pereira (1958: 29), este Corte-Real re­criado pelo romântico Pereira da Silva é um "segundo Camões", envolvido numa existência ideal­mente romantizada. Para que possamos ter uma ideia da obra, o enredo passional recriado por Pereira da Silva pode ser resumido deste modo:

(...) um Corte Real espadachim e guerreiro, que, matando num duelo o irmão da mulher amada, D. Lianor de Vasconcelos, e sendo por causa disso repelido por ela, procura esquecer o crime involuntário, indo lutar para a África. Sofre tormentas e um naufrágio, cai prisioneiro em Alcácer-Quibir e pa­dece longo cativeiro, durante o qual vem a saber que o seu companheiro de trabalhos forçados, Manuel de Mendonça, é o seu pró­prio pai, já então velho e alquebrado. Havendo sido libertados do cativeiro, pelo resgate, regressam ambos a Portugal. Em Lisboa, Corte Real publica o poema épico Segundo Cerco de Diu. Vive serodiamente pertur­bado pela paixão a Lianor, que de há muito ingressara na vida reli­giosa. Refugiando-se na Quinta da Palma, em Évora, ali lhe morre nos braços o pai, e sentindo tam­bém apoximar-se a hora da sua morte, termina uma nova epopeia, o Naufrágio de Sepúlveda, e lê para os circunstantes algum trecho dela. Morre assistido espi­ritualmente pelo seu amigo Frei Luís de Sousa. Corria o ano de 1591 (Pereira, 1958: 29-30).
           
            Como se pode ver, são vários os ingredientes que aproximam este enredo do texto poético e da visão romântica de Camões, tal como a configurou paradigmaticamente Garrett, em 1825: duelos, lances passionais, amores contrariados e infelizes, cenário de Sintra, viagens, degredo, in­compreensões, etc. Entre as inverosimilhanças da crónica romântica de Pereira da Silva, ressalte-se o encontro entre o seu Jerónimo Corte-Real e Luís de Camões no Cap. III — Conselho. Amar­gurado e mo­vido pelos remorsos do seu crime pas­sional, Corte-Real vai-se encon­trar com o grande Camões, respeitado e admirado paradigma do patriota, do poeta e do amante. Incompreendido e abandonado pelos seus contemporâneos, o Poeta vive na miséria, é "um homem velho e gasto, não pela idade, mas pelos trabalhos da vida e desgostos do mundo" (1865: 50). Camões amigo e conselheiro que Corte-Real procurava ia sobrevivendo das esmo­las que o pobre escravo Jau (António) pedia pelas ruas de Lisboa[viii]. Perante a imagem do guerreiro da Índia, do cantor da Pátria e do prostrado amante de Catarina, Corte-Real sente-se impelido a acompanhar D. Sebastião a Alcácer-Quibir, para a célebre e fatídica batalha que se efectuaria a 4 de Agosto de 1578.
            Não sendo este o momento para apreciar o valor estético da obra, nem para discutir as fragilidades da intriga ro­mântico-biográfica de Pereira da Silva, detenhámo-nos apenas nas refe­rências ao Naufrágio de Sepúlveda de J. Corte-Real. Assim, no XII e derradeiro capítulo da sua crónica biográfica, Jerónimo Corte-Real é-nos descrito na sua quinta de Palma, em Évora, reco­lhido depois de tantos e amargurados trabalhos. Foi nesse retiro que recebeu a notícia da morte da sua antiga amada, nessa altura soror Lianor da Madre de Deus, abadessa do convento de Nossa Senhora da Ajuda. Depois das dolorosas mortes da amada e do próprio pai, Corte-Real vai-se preparando também para a sua morte.
            Pelo ano de 1591, mandou chamar urgentemente o seu amigo e confessor Frei Luís de Sousa. Ainda com forças para escrever a sua última obra poética, o monge dominicano en­controu-o no leito, quebrantado e rodeado de folhas manuscritas dos primeiros versos do Canto XVII do seu Naufrágio de Sepúlveda: "Quem olhasse para elas encontraria gravados os seguintes ver­sos, que escaparam naquele momento à inspiração do vate ardente e melancólico" (1865: 225)[ix]. Perante o grande escritor dominicano, o moribundo Corte-Real leu ainda outros fragmentos do seu amado Naufrágio de Sepúlveda, como o epitáfio do mesmo canto XVII, como forma de imortalização da bela fi­gura da esposa de Sepúlveda, que morrera tragicamente na inóspita terra dos cafres:

Aquela encarecida formosura,
Aquele preço e graça desusada,
Tão formosa quão falta de ventura,
Ingrata sempre tanto quanto amada,
Uma pequena e triste sepultura
Em remoto lugar tem-na encerrada!
Fique de tão cruel e fera história
Para sempre no mundo esta memória! (1865: 227)[x]

            Deste modo, depois de ter acabado de redigir o seu úl­timo grande poema épico, aguardava pacificamente Corte-Real a sua própria morte. Antes de encetar essa última viagem, depois das atribulações do mar da vida, tinha o pressentimento de que não chegaria a publicar em vida este poema, confiando-o antão ao seu genro, António de Sousa: "Posso agora morrer. Venha a parca amiga arrancar-me do mundo, e reunir-me a Lianor querida lá em céus mais puros" (1865: 228). Aliás, como lhe confidenciava o gar­rettiano Manuel de Sousa Coutinho, com a perda da indepen­dência política, aconteceu o próprio naufrágio da Pátria, acompanhado pela morte de grandes escri­tores: Luís de Camões, Frei Heitor Pinto e Luís Pereira Brandão, entre outros. Sob o domínio de Castela, Portugal estava prostrado e de luto. Simbolicamente, a dramática morte de Manuel de Sousa Sepúlveda e de D. Leonor de Sá pressagiavam o trágico desapa­re­cimento do monarca nos areais do Norte de África e, consequentemente, o próprio naufrágio da Pátria, configurando uma expressiva alegoria sobre o desastre de uma cultura expansionista que então inicia um irremediável ciclo de decadência.
            Imbuído da psicologia român­tica, Pereira da Silva não se esquece de acentuar a natureza autobiográfica e confessional do poema épico, pondo na boca de Corte-Real estas palavras identi­ficadoras do seu caso com a tragédia de Sepúlveda, cuja bela Lianor lhe lembrava a sua amada, até pela similitude onomástica, a sua querida Lianor:

Deixo sua lembrança [de Lianor], lego traços da nossa vida, gravo testemunhos de nossos amores e de nos­sas desventuras neste poema, que com o título de Naufrágio de Sepúlveda pinta os casos miseran­dos e as paixões desgraçadas do capitão Manuel de Sepúlveda e de Lianor de Sá. Ah! Lianor minha! (1865: 228).

           Para mais expressivamente estabelecer o paralelo entre a romantizada vida do seu bio­grafado e o caso triste narrado no seu Naufrágio de Sepúlveda, Pereira da Silva volta a citar um pequeno excerto do poema épico (1865: 228): "Que caso aborrecido, que fortuna/ Tão cruel te apartou destes meus olhos?/ Que nebrina mortífera, ou que vento/ Murchou a fresca flor da tua idade?/ Qual odioso rigor, qual parca injusta,/ De tal vida cortou o doce fio?[xi].
            Ouvido em confissão, Jerónimo Corte-Real despediu-se da vida nas braços do religioso dominicano. Tinha cumprido o seu destino e encerrado luminosa e artisticamente a sua existência com a re­dacção do sua maior obra poética, o Naufrágio de Sepúlveda. A crónica biográfica termina com uma afirmação panegírica sobre as duas personagens em cena:

Era esse cadáver de Jerónimo Corte Real, poeta afamado da língua portuguesa, autor imortal do Cerco de Diu e do Naufrágio de Sepúlveda. // Era esse religioso frei Luís de Sousa, conhecido no mundo pelo nome de Manuel de Sousa Coutinho, escritor primoroso da Vida de São Frei Bartolomeu dos Mártires e da Crónica de São Domingos de Benfica (1865: 238).

            Como vemos, o romântico Pereira da Silva não encerra a sua obra sem enfatizar este encontro em inesperadas circunstâncias, apresentando-o, implícita e simbolicamente, como a aproximação de dois grandes clássicos da Língua e da Literatura portuguesas. Depois de ter associado o percurso de Corte-Real ao de Camões, aproxima agora, no significativo explicit da obra, o poeta do Naufrágio de Sepúlveda e o insigne prosador dominicano.



Notas



[i] Antes da edição conjunta com outros relatos trágico-marítimos, o Naufrágio de Sepúlveda conheceu um assinalável número de reedições posteriores, a partir do séc. XVI: 1556, 1592, 1614, 1625 e 1633.

[ii] Lisboa, Oficina de Simão Lopes, 1594.

[iii] Lisboa, Typ. Rollandiana, 1840, depois de uma 2ª ed. setecentista (Lisboa, Typ. Rollandiana, 1783). Aliás, ainda no contexto da cultura romântica, destaquemos outras obras: António de Oliveira Marreca redigia a narrativa trágico-marítima Manuel de Sousa de Sepúlveda, editada nos fascículos d'O Panorama (Jornal Literário e Instrutivo), vol. VII (1843). Ao mesmo tempo, a revista Revista Universal Lisbonense, tomo IV (1844-45), p. 328, publicava em um texto intitu­lado “Comemorações. Naufrágio de Sepúlveda”.

[iv] Ortaire Fournier era cônsul em Lisboa e, mais tarde, refugiado político. A sua tradução do poema de J. Corte-Real aparece  na Revue Lusitanienne [Lisboa], vol. I e II (1852), precedida de um breve texto introdutório (I, pp. 30-33).

[v] Madrid, Luis Sanchez, 1624. Sobre a recepção desta e de outras obras do poeta quinhentista, veja-se a informa­tiva e bem elaborada e introdução de Hélio J. S. Alves (cf. Corte-Real, 1998).

[vi] Ainda a acrescentar às obras anteriormente citadas, como exemplos deste imaginário trágico-marítimo da li­teratura romântica, destaquem-se: depois de ter publicado “Quadros Marítimos” (O Panorama, vol. XI, 1854), Francisco Maria Bordalo edita Eugénio, Romance Marítimo (Rio de Janeiro, 1846; Lisboa, 1854), recente­mente reeditado por Eunice Cabral nas edições Cosmos (1998); autor do poema narrativo Romance Pátrio Marítimo (1870), também Celestino Soares publica Quadros Navais (Lisboa, 1844).

[vii] A crítica romântica portuguesa não se alheou da obra histórico-literária de Pereira da Silva, como é o caso do pronunciamento de M. Pinheiro Chagas (1866: 221-230) sobre a História da Fundação do Império Brasileiro. Depois de destacar a fundamentação do seu imparcial trabalho de historiador, o crítico português chama a atenção para o seu notável estilo literário. Neste capítulo, merecem-lhe elogio o efeito dramático e visualista que Pererira da Silva consegue imprimir às suas descrições.

[viii] Cf. Almeida Garrett, Camões, Canto X, est. XIV.

[ix] O romancista romântico transcreve os primeiros doze versos do canto XVII, dando assim início à elegíaca lamentação da morte de D. Leonor de Sá, esposa de Sepúlveda: "Aos que nas procelosas, bravas ondas/ (...) / Inconstante, cruel, impia fortuna" (cf. Corte-Real, 1979: 865).

[x] Ver Jerónimo Corte-Real (1979: 877). Recordemos que para Almeida Garrett, alguns trechos deste Canto XVII constituíam as mais admiradas passagens do Naufrágio de Sepúlveda de Corte-Real.

[xi] Cf. J. Corte-Real (1979: 876).


Bibliografia (referências):

1. Activa

Corte-Real, Jerónimo (1979), Obras de Jerónimo Corte-Real (Sucesso do Segundo Cerco de Diu - Naufrágio de Sepúlveda - Auto dos Quatro Novíssimos do Homem - Elegias), Porto, Lello & Irmão- Ed., Col. Tesouros da Literatura e da História (introd., e rev. de M. Lopes de Almeida).
      ---  (1998), Poesia, Braga-Coimbra, Angelus Novus (introd., selec., fixação do texto e notas de Hélio J. S. Alves).
Pereira da Silva, João Manuel (1865), Jerónimo Corte-Real (Crónica do Século XVI), 2ª ed., Rio de Janeiro, B. L. Garnier, Editor.
Souza, Cruz e (1995), Obra Completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar.

2. Passiva

Chagas, M. Pinheiro (1866), Ensaios Críticos, Porto, Em Casa da Viúva Moré – Editora.
Figueiredo, Fidelino de (1987), A Épica Portuguesa no Século XVI, Lisboa, IN-CM (segundo a ed. definitiva de 1950).
Martins, J. Cândido (1997), Naufrágio de Sepúlveda (Texto e Intertexto), Lisboa, Replicação.
Moisés, Massaud (1994), História da Literatura Brasileira, vol. II, Romantismo/Realismo, São Paulo, Cultrix.
Pereira, Carlos Assis (1958), "Garrett e o Brasil", separata de Ocidente [Lisboa], 1958.


J. Cândido Martins

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